segunda-feira, 27 de junho de 2011

A Lenda das Areias

Vindo desde as suas origens em distantes montanhas, após passar por inúmeros acidentes de terreno nas regiões campestres, um rio finalmente alcançou as areias do deserto. E do mesmo modo como vencera as outras barreiras, o rio tentou atravessar esta de agora, mas se deu conta de que suas águas mal tocavam a areia nela desapareciam.
Estava convicto, no entanto, de que fazia parte de seu destino cruzar aquele deserto, embora não visse como fazê-lo. Então uma voz misteriosa, saída do próprio deserto arenoso, sussurrou:
- O vento cruza o deserto, o mesmo pode fazer o rio.

O rio objetou estar se arremessando contra as areias, sendo assim absorvido, enquanto o vento podia voar, conseguindo dessa maneira atravessar o deserto.
- Arrojando-se com violência como vem fazendo não conseguirá cruzá-lo. Assim desaparecerá ou se transformará num pântano. Deve permitir que o vento o conduza a seu destino.
- Mas como isso pode acontecer?
- Consentindo em ser absorvido pelo vento.
Tal sugestão não era aceitável para o rio. Afinal de contas, ele nunca fora absorvido até então. Não desejava perder a sua individualidade. Uma vez a tendo perdido, como se poderá saber se a recuperaria mais tarde?
- O vento desempenha essa função - disseram as areias. - eleva a água, a conduz sobre o deserto e depois a deixa cair. Caindo em forma de chuva, a água novamente se converte num rio.
- Como posso saber que isto é verdade?
- Pois assim é, e se não acredita, não se tornará outra coisa senão um pântano, e ainda isto levaria muitos e muitos anos; e um pântano não é certamente a mesma coisa que um rio.
- Mas não posso continuar sendo o mesmo rio que sou agora?
- Você não pode, em caso algum, permanecer assim - retrucou a voz. - Sua parte essencial é transportada e forma um rio novamente. Você é chamado assim ainda hoje por não saber qual a sua parte essencial.
Ao ouvir tais palavras, certos ecos começaram a ressoar nos pensamentos mais profundos do rio. Recordou vagamente um estágio em que ele, ou uma parte dele, não sabia qual, fora transportada nos braços do vento. Também se lembrou, ou lhe pareceu assim, de que era isso o que devia fazer, conquanto não fosse a coisa mais natural.
E o rio elevou então seus vapores nos acolhedores braços do vento, que suave e facilmente o conduziu para o alto, e para bem longe, deixando-o cair suavemente tão logo tinham alcançado o topo de uma montanha, milhas e milhas mais distante. E porque tivera suas dúvidas, o rio pode recordar e gravar com mais firmeza em sua mente os detalhes daquela sua experiência. E ponderou: - Sim, agora conheço a minha verdadeira identidade.
O rio estava fazendo seu aprendizado, mas as areias sussurraram:
- Nós temos o conhecimento porque vemos essa operação ocorrer dia após dia, e porque nós, as areias, nos estendemos por todo o caminho que vai desde as margens do rio até a montanha.
E é por isso que se diz que o caminho pelo qual o Rio da Vida tem de seguir em sua travessia está escrito nas Areias.

A Mulher Perfeita

Nasrudin conversava com um amigo, que lhe perguntou:

- Então, mullah, nunca pensaste em casamento?

- Já pensei. Em minha juventude, resolvi conhecer a mulher perfeita. Atravessei o deserto, cheguei a Damasco, e conheci uma mulher espiritualizada e linda; mas ela não sabia nada das coisas do mundo. Continuei a viagem, e fui a Isfahan; lá encontrei uma mulher que conhecia o reino da matéria e do espírito, mas não era uma moça bonita. Então resolvi ir até o Cairo, onde jantei na casa de uma moça bonita, religiosa e conhecedora da realidade material.

- E por que não casaste com ela?

- Ah, meu companheiro! Infelizmente ela também procurava um homem perfeito.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Onde há mais Luz

O Mullá perdeu suas chaves e foi à praça buscá-las quando um vizinho lhe disse:
- Mullá , que estás fazendo? Respondeu:
- Busco minhas chaves.
- Onde as perdeste?
- Em minha casa.
- Por que buscas aqui?
- É porque aqui tem mais luz!

Rumi

Eu olhei em torno, procurando-O. Ele não estava na Cruz. Dirigi-me ao templo do ídolo, ao antigo pagode; nenhum sinal Dele era visível ali. Fui então para a Caaba; Ele não se achava naquele refúgio de velhos e jovens. Perguntei a Ibn Sina (Avicena) do Seu estado; Ele não se achava ao alcance de Ibn Sina. Olhei para o meu próprio coração. Aí eu O vi. Ele não estava em nenhum outro lugar.

Jalal-ud-Din Rumi - Mathnawi-i-Ma'nawi (Poemas Místicos)

domingo, 3 de outubro de 2010

O Caminho do Buscador

Há, no Ocidente, muita confusão, muitos mal entendidos acerca da Tradição Sufi de ensinamento e do desenvolvimento interior do indivíduo. A Tradição Sufi é, como tem sido sempre, uma ciência exata, não se encaixando dentro da série de “ismos” que marcam muitas filosofias populares.
A Tradição - como nós que nascemos nela, a ensinamos e representamos - não é uma doutrina híbrida, embora muitos comentaristas ocidentais tenham tentado provar suas raízes gregas. A Tradição foi desenvolvida por homens de grande habilidade, dedicação e visão - homens que superaram barreiras políticas, sociais, culturais e físicas numa busca incessante pelo conhecimento que possibilitaria à Humanidade desenvolver-se.
Os primeiros santos e místicos Sufis procuraram ensinar, escrever, e criar versos para devolver ao homem o conhecimento esotérico que as religiões estabelecidas já não podiam oferecer. Os fundadores do pensamento Sufi enfrentaram a constante oposição de figuras do “Establishment” durante suas vidas. Seus escritos e seus versos sobreviveram aos que os acusaram de heresia ou coisa pior.
Eles identificaram a necessidade no Homem. Eles identificaram o anseio, não por mais e mais palavras e consolo, mas por um ensinamento que pudesse transcender tempo e espaço, raças e religiões, orgulho e preconceitos. Da nobre lista de Mestres da Tradição constam nomes como os de al-Ghazzali, Hafiz, Jami, Saadi, Salman i-Farsi, Omar Khayyam, Rumi, al-Beirun, que são apenas alguns, dos luminares cujas obras foram aclamadas em todo o mundo.
Estes homens, durante toda a sua vida, esquivaram-se à notoriedade e aos aplausos do “Establishment” e dos intelectuais - sua tarefa era construir, e de fato construíram. Com seus livros, poesia e sabedoria, deixaram os alicerces da filosofia viva, que aqueles que estão fora da Tradição chamam de “Sufismo”.
Sua motivação, sua missão, era delinear um caminho no qual o homem, uma vez seguramente engajado, pudesse aspirar a uma consciência permanente mais elevada, e, nesse estado, pudesse ter esperanças concretas de compreender-se a si mesmo e a sua relação com seu Deus.
Este caminho não é para todos, pois não é feito apenas de rosas e violinos - é um caminho morro acima, repleto de confusão enquanto o homem luta com seus condicionamentos, mas é um caminho cheio de calor, de luz e de amor.
Aqueles de nós que fomos afortunados o bastante para ter nascido ou para haver ingressado na Tradição, dizemos a todos: abram e leiam estas páginas; pode haver um caminho para vocês.

Omar Ali-Shah
Surrey, Inglaterra
Agosto de 1988
(retirado da Introdução do livro O Caminho do Buscador - Editora Dervish)